quarta-feira, 8 de agosto de 2007

Esqueça as fadas

No desespero eu corro, pela grama molhada, pelo asfalto, pela pedra. Como numa cena de cinema, corro por uma longa avenida vazia a noite, sob a luz de postes e reflexos nas possas d´aguas, em direção a câmera que me espera no fim do caminho. Mas eu não paro ao chegar nela, atravesso o limite do enquadramento, mostro a existência de um espaço por trás dela e não volto mais a quadro. Fora de campo, fora de visão.
Em seguida sentado na mesa de um bar mais escuro ainda, desejo que tudo estivesse em silêncio. Meu olhar fala mais que qualquer trilha sonora. A lente sabe disso e não desgruda dos meus olhos, mesmo quando eles evidenciam a chegada de outra pessoa a minha mesa antes vazia. Minhas pupilas seguem essa pessoa até ela se sentar, não da pra saber pela minha reação se é hostil ou boa companhia. A curiosidade da platéia só aumenta...
-Talvez você me deva uma bebida... - Disse a mulher que sentou ao meu lado.
-Só se houver um motivo para brindar.
- Talvez haja... - Ela pareceu me desafiar
O garçom estava longe. Pessoas se levantavam, pessoas sentavam. O maldito barulho continuava, sem incomodá-la como a mim.
- Então pesa duas garrafas e me encontre lá fora.
Peguei minha chave sobre a mesa e me levantei. Tinha a surpreendido. Agora estava ganhando.
Ela demorou um pouco. Obviamente teve que pagar sozinha pelas cervejas, mas dinheiro era o que não parecia faltar a essa estranha que senta na minha mesa me surpreendendo, porém como eu disse "Agora estava ganhando".
Desde que tinha chegado no bar ela me olhava. Me viu sentar, sacudir a cabelo molhado pela fina chuva e colocar minhas chaves na mesa. Parecia estar tão sozinha quanto eu. O que logo me fez perder todo interesse. Que tipo de mulher fica sozinha num bar? Sem falar que estava no meu lugar favorito. Ladra. Não a tinha visto levantar. Tomei um susto quando a vi praticamente já se sentando a minha mesa. Foram dois sustos, ela se sentando e sua frase desconcertante. É verdade. Dois a um para ela.
Quando saiu do bar chegou a tempo de me ver conferindo a chuva que havia parado e deixado tudo que se podia ver úmido.
-Pronta? - perguntei.
Ela entrou no carro sem responder. Talvez minha cara só pasasse a idéia de um bonzinho deprimido. Nada para se temer. Ou talvez ela queria exatamente que eu a levasse para um motel. Que pena, pois eu tinha outros planos. Para alguém que vai ao bar sozinha, senta no mesmo canto escuro que eu gosto de sentar e tem atitudes desconcertantes como eu, só existe um lugar para ir.
- Para onde? - ela pareceu desistir de ser durona. Tarefa muito cansativa.
- Para um lugar que merece um brinde. - respondi sorrindo. Sem passar nenhuma segunda intenção no sorriso.
- Olha, nada de gracinhas estranho.
- Meu nome é Marcos. Estudo Filosofia e sempre sento sozinho no mesmo lugar que você estava hoje.... Não sou mais um estranho.
- Hum.. Sou Lucia. Gosto de pintar e mudei de bar especialmente hoje. Gosto de dar chance ao acaso.
-Gosta mesmo. Aceitando convite de estranhos assim.
- Primeira vez que faço isso. Trate de não estragar a aventura. - ela riu...
Depois disso parecíamos mais relaxados. Até porque ela viu que eu entrei num bairro de classe alta da cidade. Mas pela minha aparência a possibilidade de eu morar lá não passou pela cabeça dela.
Parei o carro numa ladeira, como muitas que havia ali. Fiz sinal para que fizesse silêncio enquanto pulava a pequeno portão da casa ao lado. E ela me seguiu.

A casa tinha 4 andares. O primeiro era uma casa de hóspedes, quarto, cozinha e banheiro independente do resto da casa, que começava de fato no segundo andar. Atravessamos o gramado nada pequeno ainda em silêncio. Parei em frente à janela do primeiro andar e a abri com muito cuidado para não fazer barulho.
- Que diabos você tá fazendo?! - ela disse.
- Calma.. Lembra que eu prometi não estragar seu primeiro ato impulsivo?
- Prometeu nada!
- É verdade - e ri baixo - Mas prometo agora... quando estivermos num lugar mais tranqüilo pra falar te explico tudo. Não tem problema.
Ela continuou me olhando com olhar de reprovação, mas não mais me contestou. Me pareceu mais bonita ainda com cara de brava. Ela era morena, cabelo liso além do ombro, um pouco morena e com olhos escuros, tinha até algumas sardas. Não parecia cuidar de pele ou do cabelo. Tinha uma beleza natural, não proposital .
Entramos pela janela. Ela parou para olhar o lugar, eu não, já o conhecia bem. Fui até a cozinha peguei 2 copos, abri a geladeira e peguei um montila pela metade. Ela me seguia meio que afobada.
- Você ta roubando isso? - perguntou nervosa.
Não respondi. Estava ocupada pensando no que iríamos precisar. Vi que ela estava de calça jeans e uma blusa preta sem manga, poderia ficar com frio lá. Peguei a jaqueta que estava jogada no sofá-cama do quarto e a entreguei.
- Toma.. você vai ficar com frio lá fora.
- Eu não vou usar isso!
- É meu..pode usar sim...
Ela esticou a mão devagar para pegar. A testa franzida mostrava que ainda estava tentando entender o que estava acontecendo. Voltei para a cozinha seguido de perto por ela. Atravessei direto até as portas dos fundos. Agora estávamos no quintal dos fundos, um gramado íngreme e escorregadio pela chuva.
- Vai na frente. - eu aconselhei. - Assim te seguro se escorregar.
Ela foi com a falsa segurança de que eu poderia a segurar se alguma coisa acontecesse, já que eu estava com dois copos e três garrafas nas mãos. A subida foi um tempo de silêncio, em que eu a olhava por trás sem medo de constrangimento. Notei a tatuagem um pouco abaixo do ombro esquerdo um pouco coberto pela alça da blusa. Seu corpo não tinha formas que atrairiam trogloditas nas noites da cidade, mas como eu já disse antes ela possuía uma beleza natural. Só nessa hora percebi como eu estava muito mal apresentável para qualquer garota me notar como eu notava ela. Barba por fazer, usando minha camisa mais surrada possível. A jaqueta que era novinha estava ironicamente com ela.
Chegamos ao topo da subida e logo as luzes da cidade se mostraram pra gente. A vista era maravilhosa, dava para ver toda a cidade, aviões subindo e descendo do aeroporto e luzes piscantes dos carros.
- Nossa! - foi a única coisa que ela conseguiu dizer.
- Eu sei..- retruquei ironicamente - Veste a jaqueta, vai morrer com esse vento gelado.
Enquanto ela a colocava eu me sentei ao pé de uma arvoré e abri as cervejas, dando lhe uma quando se sentou ao meu lado.
- Um brinde? - ela propôs sorrindo. Belo sorriso.
Ri - A que?
- A essa bela aventura que você ainda não estragou...
- Ok! A essa bela aventura que eu ainda não estraguei.....ainda!
E brindamos... Paramos um momento para olharmos a cidade viva.
- Gostei da sua tatuagem. - disse.
- Ah! tava me olhando é?
- Tava cuidando da sua segurança.. seja grata. - sorrimos.
Ela se ajeitou para uma posição mais confortável.
- É uma fada dos sonhos.
- Acredita em fadas?
- Acredito em sonhos...
-E qual é o seu?
Ela me olhou de lado
- Isso é algo para uma segunda aventura... Nem te conheço ainda.
- Como não? Já te disse meu nome e contei da minha vida toda!
- Sua vida toda?
- É... Ou você acha que minha vida é mais agitada do que estudar e ir em bares?
- Acho! Uma pessoa assim daria valor a um lugar desse. Relaxante e lindo... Aliás como você invade uma casa assim?
- Isso é uma explicação para uma segunda aventura...
- Engraçadinho...Você falou que ia explicar..Vamos!
Ela me deu um empurrão com o ombro.
- Essa casa é de um amigo meu. Rico, mas com alma de pé-rapado como eu. Então ele não se importa de emprestar o primeiro andar pra quando alguém do grupo precisar e só não incomodar o resto da casa...
- Mas porque entrar pela janela?
- Isso foi só pra brincar com você. - disse rindo.
Ela riu mais ainda e foi quando pela primeira vez nossos olhares se encontraram.
- Já que a cerveja acabou aceita um montila? – sugeri.
- Claro. Vou fingir que não vi você pegando a montila e dois copos já com essa intenção.
- É sempre bom ta preparado para uma vista dessa.
Eu a servi e com mais uma ajeitada ela deixou de se apoiar na arvore e agora se apoiava no meu ombro, quase que com a nuca deitada nele. Estávamos relaxados.
A conversa continuou por muito tempo. Ela uma estudante de pedagogia de 21 anos, tão perdida quanto eu. Juntos vimos como não sabíamos o que seria da vida dali pra frente. Só estudar já não nos completava, trabalhar parecia algo muito premeditado.
- Qual tal viajar pela América do sul? – ela me sugeriu. Acredita que eu cogitei a idéia?
E assim vimos nossas vidas resumidas a dias em que se pensa na vida e noites em que se tenta esquecer dela. Bar em bar, balada em balada com vícios cada vez mais sufocantes.
Ela disse que costuma sair com as amigas, homem é só dor de cabeça, nunca a levariam para um lugar como esse. Mas como sua vida antes da faculdade ficou toda em sua cidade natal em Minas. Só lhe restou duas grandes amigas que fez na faculdade. Ao contrario de mim que nasce, cresci e me rastejo por aqui desde sempre.
Não lembro a partir de qual gole comecei a me perguntar o que ela quis dizer com estragar a noite. Ela agora estava com a cabeça no meu ombro, sua mão às vezes parava sobre meu joelho, sem se importar com o mal estado da minha calça, até que levantava de novo para gesticular algo que ela falava. Ria de qualquer besteira minha dita, parecia tão à vontade ou um tanto alta naquele lugar. Será que algo a mais estaria fora da lista de coisas que estragariam a noite? Ou saíra da lista durante a noite, não sei.
- Vamos indo. Tenho algo pra fazer ainda. – anunciou ela cortando meus pensamentos.
- Fazer o que?
- Isso já é algo pra se contar na terceira aventura.
- Terceira? Deve ser pesado mesmo. E você me recriminando por entrar pela janela.

Na descida a bebida não perdoou, os dois escorregaram feio, sem chances de freio. Entramos na cozinha ainda segurando a risada para não acordar ninguém. Deixamos copos e a garrafa vazia na pia. Azar do primeiro do grupo que voltar lá. Jaqueta de volta ao sofá e nós de volta ao carro.
Deixei a em uma rua que não conhecia. Um pouco longe de onde ela realmente ai para eu não descobrir eu contou. Antes dela se despedir lhe dei um beijo. Não vi da onde ele veio, não foi pensando, muito menos articulado, quando me dei por mim estava a beijando.
Assustada ela recuou a cabeça e me olhou com raiva. Sua mão veio zunindo em direção ao meu rosto. Nunca tinha tomado um tapa na cara antes. O barulho foi de tapa cinematográfico, a dor eu já não sei. Pronto, tinha estragado a noite.
Ela saiu do carro ainda pegando fogo, contornou o carro pela frente. Quando chegou perto da minha janela jogou a bolsa no capo e a abriu. Procurava algo. Tirou um papel é uma caneta da bolsa, anotou algo e pediu para eu abaixar o vidro.
Eu só me perguntava o que viria a seguir. Ainda atordoado, mais pela minha atitude que nem eu coordenei do que pelo tapa, que latejava no meu rosto de barba mal feita.
Me entregou o papel e deu um belo sorriso.
- Até a próxima aventureiro.- e seguiu rua a dentro.
Era seu telefone e um aviso que eu devia ligar só dali a 21 dias.
- 21? – gritei pela janela.
- Para dar tempo do tapa parar de doer e eu para eu não enjoar de aventuras. – ela gritou de volta
Mulher louca. Liguei o carro e voltei ao bar para sentar no mesmo lugar com a câmera focada em meus olhos.

Nenhum comentário: