Estávamos eu e o Gabeira escondidos na casa de Ana. Ele havia seqüestrado um embaixador americano em troca de prisioneiros políticos e eu havia quebrado o vaso favorito de minha mãe a troco de nada. Visto que meu caso era mais sério dormia no único colchonete disponível, enquanto Gabeira dormia no chão. Afinal, era um aparelho planejado para somente um fugitivo. E eu podia ver seu olhar de pena pela minha condição toda vez que me dava boa noite.
Nosso álibi era Ana, a dona da casa. Era preciso medir todos os esforços para que nenhum vizinho desconfiasse que havia alguém morando ali além de Ana. Ficávamos sempre no mesmo cômodo, comíamos sempre no mesmo horário e não quero nem falar sobre os banhos.
Quando Ana saia para trabalhar não era possível fazer o menor barulho ou então fechar as janelas, isso podia despertar suspeitas. Assim, eu e Gabeira passávamos a maior parte das manhãs sentados no chão, embaixo do batente da janela, apenas existindo entre uma baforada e outra. Trocando olhares sem sentido e tomando susto com qualquer movimento suspeito lá fora. Nós dias mais quentes ele cismava de vestir apenas uma sunguinha rosa e eu tinha calafrios.
Por trabalhar bem cedo Ana sempre saia correndo atrasada e sem tirar a mesa do café. Foi quando, sem poder fazer nada, conhecemos Eduardo, a mosca. Pousando sobre a manteiga e as migalhas de pão. Os dias se passavam e a presença de Eduardo se tornou um tormento. Não era possível matá-lo sem fazer barulho como fizemos com Raul afogado na sopa., já Eduardo era esperto demais para isso. Voava a um palmo de nossos rostos com um tom de deboche, passava rindo ao pé do ouvido e escapava sem dificuldade do tapa que eu acidentalmente acertava em minha própria orelha.
Era um inferno.
Gabeira conseguiu se manter são. Havia tomado como meta prioritária da sua vida estudar os movimentos de Eduardo, seguir sua rotina. E assim, montar uma armadilha silenciosa para ele. Eduardo seria a primeira mosca morta com classe, vítima de uma emboscada planejada nos mínimos detalhes. Um dia, Gabeira acordou decidido a montar seu plano e levou um bloco de notas para o café da manhã.
Eu já pensava diferente, não acreditava na guerrilha armada para derrubar o governo militar e era totalmente contra a morte de Eduardo. Admito que queria, mas não ia, preferia outra estratégia. Só observava Eduardo. Pousando no pão, rosando as patas dianteiras cinco, seis vezes em media, voando para a manteiga. Esses eram seus locais favoritos. E Gabeira anotando em seu bloquinho. Depois de praticar esse ritual três vezes, Eduardo saia para um voou livre. Depois do deboche costumeiro ele dava de cara no vidro da janela por várias vezes seguidas. Parecia não entender como funcionava aquele campo de força que o impedia de sair. Ele tentava até dar fome novamente e voltava para a mesa.
Foi quando percebi que Eduardo era tão prisioneiro quanto nós. Se Gabeira desejava o fim da ditadura, Eduardo só queria o fim do bloqueio invisível. Talvez um vidro pelo qual as moscas possam passar. Já eu era uma pessoa comum, com desejos comuns, só queria ser rico... E essa era a solução!!! Eu tinha que inventar um vidro por onde as moscas conseguissem sair e não entrar mais. Eu compraria um vidro desse, Dona Maria também compraria, aposto que até o Gabeira compraria.
Eduardo era minha salvação. Poderia usar as manhãs livres para bolar esse projeto e usar ele como cobaia. Só precisava convencer Gabeira de que essa idéia valia a pena... PÁ!!!
Eduardo jazia esmagado sob a sandália de Fernando. E eu apático de olhos esbugalhados.
- O que é isso companheiro?
*Inspirado em um trecho do livro "O que é isso companheiro?"
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