- Precisamos conversar.
- Agora não pai, to indo comprar cigarro.
Decisão tomada. Decisão precipitada.
Ele deu a volta no carro. Como num filme de várias telas, acompanhei a figura de fraque passar janela por janela sem olhar para dentro do carro.Abriu a porta e sentou no carona.
- Então a gente conversa no caminho.
Tudo sempre era um prova de força. Um teste de Golias para Davi. Se havia ainda alguma pedra para arremessar.
Foram tantas. Aos 19 havia sai de casa. Voltei aos 20 com rabo entre as pernas, mas com alguma coisa no bolso. Logo comprei esse meu carro. Com 23 abandonei a faculdade a contragosto e comecei meu negocio pela internet e voltei a sair de casa aos 24. Tudo a duras brigas com meu pai.Mas expulsa-lo do carro seria algo um tanto mais escandaloso.
Virei a chave e ele não demonstrou nenhuma comemoração de vitória.- Você não vai me explicar o que aconteceu lá dentro?
- Não tem nada para explicar.
- Você quase arruinou o casamento de sua irmã.
A caçulinha.
- Eu? Você me viu fazendo alguma coisa?- Vou te dizer o que eu vi... Vi uma madrinha histérica te xingando aos berros.
Mulheres berram por qualquer coisa.
- Você não sabe como são as mulheres?- Ela tem um noivo Ricardo! E ele está na festa!
- Eu sei!
- Eu não me importo com suas aventuras sexuais ou coisas de tipo. Eu já tive as minhas. Mas nem pra isso você consegue ser discreto.
- Já teve é? Me convence.
Se naquela família escândalo é perder a virgindade antes dos 18.
- Eu namorei sua tia Vânia antes de conhecer sua mãe no primeiro jantar em família que fui. E terminei a noite voltando para casa depois de ter transado com sua mãe escondido.Cortei o sinal vermelho.
- Quê?!!
E eu esperando algo do tipo "Experimentei maconha na sua idade"
- Você e a tia Vânia?- Poucos descobriram e depois que casei com sua mãe esse assunto nunca mais foi mencionado.
- Foi proibido você quis dizer.
- Que seja. Fizemos o que achamos melhor.
- Isso não era pra ser uma lição de moral? Acho que não tá indo pelo caminho certo.
- Eu me apaixonei pela sua mãe. Não estraguei uma festa e dei história para as tias fofocarem por um ano por causa de uma transa qualquer como você fez.
Uma transa?
- Acorda pai. Você acha que a Silvinha dormia tanto lá em casa porque?Ele congelou. Ganhei o jogo de surpresas.
- Você fazia isso dentro da minha casa?
- Estamos quites. Também tive minhas aventuras.
- Que parte do "dentro da minha casa" Você não entendeu?
- Não foi nada disso. Durou dois anos.
- E como isso melhora a situação?
- Que outra mulher você já me viu ficar por dois anos? A gente se gosta... Só não deu certo.
- E sua irmã sabe disso?
- Ela tentou ajudar de todos os jeitos...
Se não tinha outro jeito era melhor juntar os dois de vez
- ... Mas não demorou muito e Silvinha desistiu de mim e arranjou esse noivo...E nunca mais tive sossego.
- ... Satisfeito?- E por que diabos não dava certo?
- Ah... Tudo foi sempre transas e brigas.
Com ou sem noivo.
- Bom saber que hoje não quebraram a rotina.- Eu nem toquei nela.
- Então qual foi o motivo daquilo tudo?
- Ataque de ciúmes.
- Quem foi a garota?
- Que garota?
- A que causou a briga.
- Por que sempre tem que haver uma garota? Não houve garota nenhuma! Eu não fiz nada.
- Então por que ela gritava?
- Porque mulheres sempre gritam!
Sempre! Mesmo quando o ataque de ciúmes é nosso.
O carro freio bruscamente. Já havíamos chegado ao posto.- Espere aí que eu vou comprar o cigarro.
Consegui sair do carro. Pude respirar melhor. Tirar a gravata de vez e procurar os trocados. Mas não havia nenhum. Meu pai em silêncio. Eu fiquei em silêncio. Desci lentamente até a janela.
- Pode me emprestar cinco?
O dinheiro já estava n mão.
- Quando você vai arranjar um emprego?
- Como assim um emprego? Eu já tenho uma profissão.
- E qual seria?
- Playboy! Não é o que você sempre diz?
Peguei a nota. O celular dele tocou. E eu me toquei dali.
- Filho?
Sim?
- Se gosta tanto dela talvez fosse hora de acabar com as barreiras que você cria para ser feliz... Alô?
Não havia dúvida de que queria um cigarro mais que tudo naquele momento. Ou talvez algo mais forte. Um charuto, uma cigarrilha. No balcão havia alguns chicletes, chocolates e doces caros. Talvez eu só queria algo mais barato. Um sedanapo, um salgado para equilibrar a bebida. Ou talvez algo novo. Um isqueiro extra gordo. Mas conferi o antigo no bolso.
Tudo isso eu tinha, poderia ter.
- Vai querer o quê? – a caixa me perguntou.
Dei por mim o que queria. Queria Silvinha. Queria mais do que querer. Queria poder dizer. Queria mandar tudo se fuder. Queria Silvinha.
- Um maço por favor.
- Já é tarde demais.
O quê?!
- É quatro reais.
(...)
- Nós vamos voltar. – entrei no carro decidido.
- Pra onde?
- Como pra onde? Para o casamento.
Motores aquecendo.
- Vamos é?
Motores engasgados.
- Acho melhor você dirigir.
To nervoso demais.
- Mas você nunca me deixou dirigir seu tão precioso carro.
E inconseqüente.
- Nem você. Mas mesmo assim eu dirigia escondido.
- Você acha mesmo que conseguia pegar o carro por pura malandragem sua e ninguém percebia?
- Por que não?
Ele deu e volta e assumiu o volante. Assumiu a narração da vingança. E deu a partida.
- Acho que você não devia voltar para a festa.
- E por que não?
- Porque eu acho.
- Só isso? Você acha?
- A garota nem deve mais estar lá. E sua irmã não deve querer te ver tão cedo.
- E o que me aconselha?
- Não ir.
Baforada.
- Você tava indo bem com o papel de pai preocupado agora pouco. O que houve?
O celular tocou novamente. Mesmo número incomodo. Não é preciso atender para saber. Ele vibra gritando por atenção, mas não tiro as mãos do volante enquanto dirijo. Não pra isso.
- Você quer mesmo um conselho? Já é tempo de crescer. Deixar de ser egocêntrico e teimoso.
- Teimoso? Eu sou independente com um negocio próprio que você nunca reconheceu e eu que sou o teimoso?
Cada um com seus problemas. De trabalho.
- Essa ligação realmente te irrito, não?
Não!
- Não foi nada que eu já não aprendi a lidar.
A confusão entre aprender e acostumar se confunde ainda mais dentro dessa carro. E o silêncio acelera o costume.
- Você sabe que se quiser pode conversar comigo?
- Você também.
E o resto da viagem foi só silêncio.
2 comentários:
Taí uma verdade: há sempre a "confusão entre aprender e acostumar".
bj
E o risco de nos tornarmos "cadáveres adiados que procriam" como diz Fernando Pessoa...
Bela bofetada meu caro
Abraço
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