Eu havia perdido a noção do tempo em que fiquei a me encarar naquele espelho de dois metros de altura, preso na porta de um armário maior ainda. Em pé fincado, como quem percorre minuciosamente uma pintura exposta. E aquela parecia ser a primeira vez que me via. De fora meu olhar não parecia ser o mesmo, mas minha postura era encurvada como sou por dentro. Bem diferente de como me imaginava. Meu corpo me contava tudo que durante anos eu não me preocupei. Sem culpa de sua nudez. Já meu rosto não me parecia familiar. Parecia estranhamente um boneco de cera. Minha pele brilhava seca. Meus pelos pareciam implantados rigorosamente para aparentar naturalidade. Defeitos e cicatrizes pensados para acertar.
E se aquele quarto de fato fosse um museu para que eu me exposesse, minha única turista havia se cansado e adormecido na cama atrás de mim. Não fingia mais se importar com meus desabafos. Procurei sua beleza por trás de minhas costelas no reflexo do espelho. Mas só vi o volume por baixo do lençol. Nem me lembrava se estava nua ou vestida sob aquele lençol. Não me lembrava de nada. Não me lembrava do seu nome. Não me lembrava de como havia entrado nessa casa. Não me lembrava de como ela estava por baixo daquele lençol. Se dormia feliz ou frustrada. Se dormia vazia ou satisfeita. Não me lembrava o que de mim ficou nela. Não lembrava, não me achava.
Passei a mão no rosto. Ele esticava feito borracha, mas a expressão não mudava. Aquele reflexo olhava abobado para mim, como eu para ele. Passei as mãos pelo cabelo. Entrei pelas entradas e fui até a nuca. E lá comecei um vicioso cafuné. Mais pelo prazer de fazer do que o de receber. Relaxei num suspiro. Como naquelas tardes de solidão na rede.
Porém, minha cabeça não parava. Não conseguia impedir que fosse até onde quisesse. Ia das lembranças que incomodam aos pensamentos que causam apatia. Era livre para ir do céu ao inferno em questão de olhares. E tudo girava:
Na cegueira de meus ouvidos meu pai me dizia para nunca desistir. Nas horas de febre os remédios de minha mãe acabavam com a gripe. E quando eu estava pronto para me encher de desculpas. O reflexo me dize para não mentir. Tudo parecia granulado, tudo em close era distorcido por uma objetiva. Era o cinema da vida.
Andei pelo quarto atrás de me livrar da censura do espelho. Encontrei minhas roupas jogadas, porém não surradas. Mas não me lembrava de como foram parar ali.. A poeira da manhã dançava entre os raios de sol. Notei que havia amanhecido enquanto eu estava do outro lado do espelho. Calculei no susuto que eu não dormia havia mais de vinte quatro horas. Resolvi me deitar na cama.
A cor rosa do teto e a luz amarelada passando pela cortina é tudo que eu consigo me lembrar depois disso...
2 comentários:
gostei. isso do espelho rende contigo.
gostei do ritmo e da "voz de personagem" bem presente, sabe como? palpável. mandou bem.
"mas minha postura era encurvada como sou por dentro."
Identificar-se assim é bom e é ruim. Perturbador e muito bom.
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