Irmão, meu sol tem nascido quadrado. Entre paredes que subiram das ruínas as presas. Tortas e grossas. Feitas das pedras da própria ilha. Para reconstruir prisões foi fácil ser auto-suficiente. Ao contrario de comida e remédios. Mas logo serei o próximo a escapar. Seja por terra ou por mar. Os rios que abre e fecha a praia com certeza é o caminho mais seguro. O da direita ainda mais, por adentrar a Mara em maior parte de seu percurso. Levanta até bem próximo de caixadaço. Praia perfeita para embarcar num bote escondido.
Dia sim e feriado, minha rotina se tornou esse lento planejamento de fuga. Esquentando até borbulhar. Dia a dia, mês a mês. Durante o ano que estou aqui preso tenho esperanças que a loucura lá fora termine logo. Mas parece mesmo que o continente esqueceu-se de nós. Deixou o problema trancado conosco aqui na ilha.
A primeira atitude foi decretar estado de quarentena. Depois trazer o exército para fazer valer. Nenhum barco saia ou chegava. Nenhum doente saia, nenhum remédio entrava. E com o continente seguro da epidemia esqueceram-se de curar a ilha.
Ninguém sabia que doença era aquela que surgiu nas ruelas e nos quintais das casas dos pescadores na vila. Os grandes empresários do turismo esconderam a escândalo da mídia o máximo que puderam. Eu que havia chegado para passar uma semana de férias com mais três amigo não vi de onde veio tanto terror.
Descendo no cais ainda era preciso uma caminhada entre as ruas de pedras, terra e trilha subindo escadas de raízes para chegar à casa que alugamos. A beira da trilha para atravessar a ilha até dois rios. De fato, da varanda deitados em redes víamos os humanos suando como porcos caminhando. Eles combinavam o que iriam comer no jantar quando chegassem salvos aos seus campings e nós assistíamos pela janela como um quadro que se movia.
Num dia, uma francesa quase desmaiando no nosso portão depois de quatro horas de trilha passou à tarde conosco. No inicio bebia água para hidratar, no final cachaça para se animar a continuar. Foi embora não por falta de convite de ficar.
De um dia para outro, casos e mais casos apareceram. Entre nativos, turistas e comerciantes. A doença era contagiosa de tal forma que não deu mais para esconder e logo não deu mais para fugir. As noticias chegaram como ondas. Atordoados, tentávamos sentar e pensar no que fazer, mas logo chegava outro como caixote para bagunçar tudo. Começar do zero.
O medo separou a ilha em duas. De um lado os doentes e desesperados pela cura, do outro os sobreviventes desesperados por uma fuga. Se escondendo dos contaminados. E sem saber de onde surgiram aqueles que se nomearam polícia. Portavam armas e andavam uniformizados, mas os rostos eram claros. Tratavam se de donos de pousadas que cresceram ainda mais seu mínimo poder sobre a população. Querendo isolar quem agonizava. Agredindo familiares, tratando como inimigo quem oferecesse perigo.
Quem não teve tempo de pensar, correu. Evitava a polícia e os doentes. Transformando casa em verdadeiros abrigos protegidos com cercas e madeiras. Logo a rua se tornou terreno de perigo. Sempre vazia e com pedestres apressados. Se passava rápido, focado atrás do que se procurava e ia direto para casa. Quem demonstrasse algum vestígio de doença não voltava mais.
Eu raramente saia de casa. Fumávamos um e nos alienávamos em paz. A corneta da polícia que soava vinte quatro horas por dia incorporava o som ambiente da ilha. De repente se aproximava, a brisa cortava e nos trancávamos em casa com as luzes apagadas.
Éramos prisioneiros numa terra sem leis. A voz mais alta era da selvageria e quando a munição acabou começou a se caçar contaminados com lanças e facas. Na calada da noite explosões de movimentos surgiram no meio da trilha. Folhas balançavam, animais se afastavam e se ouvia um grito de socorro na língua que um dia foi humana.
Uma vez uma as caças caiu em nosso jardim. Fugindo. Travamos a casa sema agredi-lo. Mas mesmo assim ele quis invadir. Matamos com pauladas para nos defender. Tivemos que matar. Aquele ser desesperado não mais pensava. Queria nos atacar pela posse do abrigo. Cada fôlego que tomava, o risco de nos passar a doença aumentava. O sangue dele nunca mais saiu da varanda.
Prometemos nunca mais fazer isso. Era melhor ser consumido por essa praga do que matar novamente.
Passou uma semana e a dispensa começou a minguar. Samuel fora atrás de comida e não voltou mais. Talvez fora pego pela polícia, pelos contaminados agressivos. Não havia como saber o que aconteceu. Para Natasha foi difícil aceitar a perda e na segunda noite resolveu sair para procurar seu namorado. Foi impossível convencê-la do contrario. Foi impossível me convencer a acompanhá-la. Era suicídio.
Natasha voltou. De mãos abanando, mas salva. Me convenceu a segui-la no dia seguinte. Foram três dias de procura que só servirão para nos tornar mais seguros de sair as ruas. Já nos sentíamos experientes o bastante para sobreviver do lado de fora. Achamos por ai ótimas pranchas de madeiras para reforçar as barreiras da casa. Enlatados, roupas em varais, filtros de café e água. Não precisávamos mais nos esconder sem ter o que comer desde que voltássemos antes do anoitecer.
E foi cheio de confiança que fomos seguidos até em casa num final de tarde sem perceber. Por pouco não consegui escapar quando invadiram a noite. Não dava para saber quem eram. Foi uma confusão de luzes e barulhos de atordoar. Natasha fora morta ainda dormindo. Enquanto eu rolava morro abaixo ouvindo seus gritos.
As noites que se sucederam foram de desespero doloroso e exorcismo. A humanidade se extinguiu em mim. Não havia mais entes queridos para me responsabilizar e afagar. Não havia mais a duvida do amor por Natasha para solucionar. Não havia mais português para comunicar. Não havia nada, além do instinto de sobrevivência e o sonho da fuga.
Passei para o grupo dos que não haviam onde se esconder. Foi preciso dormir na mata e se aventurar pela selva de pedra de dia em busca de comida. Enquanto isso boatos de que o presídio em dois rios usado durante a ditadura e berço do C.V. havia sido reerguido para trancafiar os doentes capturados. A situação se mostrou perpetua. Os sinais de que um dia aquela situação terminaria sumiram de vez com essa noticia.
Ali nas ruas pude conhecer a doença que todos desconheciam. Os doentes deliravam acordados. Falavam línguas estranhas e não carregavam afetos e características de sua época saudável. Deixavam de comer e se cuidar. Definhavam lentamente e se tornavam cada dia mais agressivos. Até que morriam vítimas de ferimentos em seus corpos muito frágeis que eles mesmos criavam. Nunca a doença chegava ao seu fim, mas o fim chegava aos doentes.
Via nos seus olhos a imploração para morrer logo. Sobrevivendo na mata me via cada vez mais selvagem e arrisco. Livrar as pessoas daquele mal me parecia a única bondade que podia fazer. E depois de matar uma vez a segunda não doeu em mim.
A primeira fora uma criança de apenas dez, nove anos. Me abordou durante a noite, acordei com o cheiro de sua saliva espumando num estágio crítico de sua doença. Provavelmente abandonou a família, que nada mais podia fazer para conter sua agressividade. Só corriam o risco de se contaminar.
O garoto estava no esgotamento de sua vida. Queria me devorar com os olhos, mas seu corpo não agüentou e caiu de quatro no chão. Dali não levantava respirando ofegante, implorando pelo fim da dor como um inseto no chão agonizando lentamente com as patas erguidas. Eu fui rápido e eficaz para que ele sentisse menos dor possível.
Deixei seu corpo estendido na praça da igreja, encostado na cruz de frente ao mar. O belo mar que rodeia o paraíso esquecido de Ilha Grande. A beleza e a força da natureza era maior que qualquer convívio humano, trazendo tudo e a todos da ilha de volta aonde nunca devia ter saído. A natureza selvagem. Ao equilíbrio.
Participei de seu enterro na manhã seguinte. Como anônimo, um assassino anônimo. E gritei palavras de protesto mais alto que todos ali. Pelo fim dessa quarentena. Pelo fim das mortes e do terror.
Tempos depois um senhor ainda em estado consciente me pediu em frases concretas para que o ajudasse. Queria morrer e não outro caminho. Com ele pude ser mais cerimonial e lhe dar uma morte como ritual para a liberdade. Ao contrario daquele menino que teve que ser morto como vivia, como um animal.
Fui também ao seu enterro. E minhas palavras já conhecidas do funeral anterior ganharam ecos e gritos de apoio.
Ganhei conhecimento entre os que perderam parentes e ainda tinha que fugir da polícia cada vez mais aristocrata e irracional. Era figura marcada nos protestos e enterros. E fui durante um deles preso. A polícia entrou botanto todos pra correr numa debandada e me algemou pelos assassinatos. A revolta foi geral. Vaias e pedradas. Pela primeira vez a polícia foi aplaudida em Ilha Grande sitiada.
Fui trazido para dois rios e trancafiado na ala do presídio destinada aos criminosos. Assassinos, ladrões, estupradores e perturbadores da paz. Os doentes ficavam isolados até morrerem. A ala deles nunca ficava cheia.
Um ano se passou e não há notícias de ajuda vinda do continente. Eu definhei aqui. Fiz até amizade com meu carcereiro. Fábio. Um exmarinheiro que levava os turistas para passear no seu barco, agora confiscado. O amor que esse homem tem pelo mar é de tal maneira que sua vida não é mais completa em terra. Ele diz se sentir como uma galinha, que é ave, mas não consegue voar. Trabalhar para a polícia foi a única maneira de sobreviver. Por isso nunca se empenhou em me manter na linha. Amanhã é o grande dia e hoje ele jantou sentado comigo e se despediu como um velho amigo. Quando foi dormir disse: “Adeus”.
Meu irmão, meu sol tem nascido quadrado a mais tempo do que estou preso. Embora nessa ilha o número de estrelas sejam incontáveis, assim como as razões para se amar esse lugar. Estar sofrendo pelas mãos do homem onde ele parece não merecer nenhum poder me faz perder o chão. Por isso melhor seria morrer na mata do que no presídio da praia de dois rios.
Um comentário:
Juro que eu quis ler mas vc escreveu pra caralho rsrssrrsr
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