quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Muita calma com esse calmante

José foi um hipocondríaco filho da mãe. Nunca teve nada além de uma gripe a vida inteira. Mas calou a boca de todos quando morreu internado em um hospital. Ele realmente tinha alguma doença que ninguém mais via. O pior foi que nenhum médico sabia dizer o que ele tinha. alguns não médicos chegaram até a palpitar que o problema era exatamente o que ele não tinha. Vergonha na cara. Como pode alguém em plena saúde falecer logo após adquirir uma dívida maior do que a hipoteca de sua casa? Como pode alguém morrer após registrar dois filhos de uma garota com metade da sua idade? Julia, sua mulher, não teve nem tempo de perguntar que história era aquela de filhos em Búzios. O sujeito logo fez de bater as botas e deixar tudo para trás, para os vivos.
Mesmo assim, não teve quem não tenha chorado no enterro do Zé. Primo, irmã, vizinho, filho não bastardo, cunhado odiado, colega de trabalho, colega de faculdade, colega de espera em consultório. Foi um enterro digno de quem se preparou a vida inteira para isso. Não faltaram flores, lenços, nada. O padre já havia sido escolhido dois anos antes. E a cova comprada em prestações. Uma baita decoração e organização.
Se em enterro de sambista rola samba, em enterro de hipocondríaco reina o calmante. Todos estavam histéricos. Julinha ameaçou tomar todos os trajas pretas gritando "me leva com você!" debruçada sobre caixão feito de pinho canadense com revestimento interno duplo. Mas foi impedida por Gilmar, o enfermeiro amigo da família dês de quando ainda era estagiário na clínica preferida do falecido. Naquele encontro, as manchas que ele jurava serem câncer de pele não passavam de micose de praia.

José de Sampaio faleceu nessa madrugada de dois de abril de mil novecentos e oitenta e oito, deixando esposa e filho. Adorado por parentes, amigos e inúmeros clientes de seu consultório dentário. Zé ainda estudou em seu juventude para ser farmacêutico, mas suspendeu a faculdade quando seu filho nasceu. Grande amante de truco e da regiões dos lagos. Seu velório foi realizado essa tarde e somente foi permitida a entrada de quem portasse convites assinados pessoalmente pelo falecido durante sua vida. Segundo testamento, tudo ficou para sua esposa, apenas seu estoque de remédio foi exposto durante o velório, caixas e mais caixas para quem lhe melhor fazer utilidade. Com exceção dos psicotropicos, esses foram deixados para seu sobrinho Moura, que fará bom uso dos mesmos.

Um comentário:

Luanne Araujo disse...

é... ninguém quis ouvir o pobre zé, agora só resta chorar...

irônico, as usual ;)