quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Coração

Isso não pode estar certo. Devo estar adormecido ainda ou tendo um feedback qualquer. Mulher alguma teria tanta audácia. Cara de pau. PE-TU-LÂN-CI-A. Isso não é algo que se deixa pra trás. Isso não é algo que se esquece.
E bem no meio da sala?
Passa a noite, vai embora escondida e deixa o coração no meio da sala?
O que isso quer dizer?!
É aterrorizante ver como ainda pulsa. Lentamente como se estivesse dormindo. Transbordando perfume. O perfume dela. Aterrorizante como uma bomba.
O que eu faço com isso agora? Pego pra mim? E tem que cuidar? Limpar? Ele se alimenta de que? Pode deixar sozinho no apartamento ou tem que levar pra onde for?
Não vou poder sair de casa até ela voltar?!
Ela não pode ter ido muito longe. Logo deve voltar. Isso não é algo que se abandona. Isso não é algo que se dá. Ela vai voltar. Tem que voltar. Isso aqui não está certo. Não pode estar certo. É fácil sair sem se explicar. Se doar sem se vender. Isso tudo é injusto comigo. Não pedi nada, não dei nada. O que devo fazer?
Primeiro acender um cigarro que quase não sinto mais o cheiro nessa casa. Ligar o laptop e pesquisar no google. A sabedoria digitalizada me deixará a par de todos os cuidados que devo ter. Uma infinita lista de cuidados. Colesterol, manteiga omega 3, yoga... Essas coisas vivem dando problema e durando pouco.  Imagina ela voltar e encontrar uma artéria entupida? Haja ouvido.
Ela vai voltar. Trazendo o café da manhã pra gente. Ou coisa assim. Tentará adivinhar o que bebo quando acordo porque não sabe o que eu bebo quando acordo. Me preocupo se lembrará quantos lances são de escada e qual é a chave da tranca. Ela surgiu do nada. Com uma beleza de me tremer as pernas e um jeitinho encantador. Fui praticamente uma vítima.
E se não voltar sou capaz de me vingar. Quebrar sua janela com meu coração de pedra. Uma troca justa. Terá que carregar consigo o peso do meu coração. Por onde for. Assim logo se arrepende e vem me gritar para que lhe devolva o coração que roubei. Cachorro, canalha, egoísta, desperdício de tempo. É um caminho sem volta.
Logo tudo vai começar e meu estômago já embrulhou demais para um café da manhã. Melhor tomar um vinho para abrir o apetite. Faz bem também para o... você sabe. Só sobrou uma meio taça de ontem fora da geladeira. Azedo do jeito que eu gosto. Dou goladas como remédio. Pois essa garota é um veneno e esse coração uma armadilha. Devia me livrar logo disso pela janela, sufocando com a almofada.
Mas ficamos aqui apenas nos encarando. Nunca tinha visto um coração assim tão de perto, tão nu. Tão vermelho que parece um pouco amarronzado, tão tranquilo que parece em perfeito estado. Sinto vontade de morde-lo de raiva. Arrancar um pedaço de sua carne. E ouvi-lo gemer de prazer. Vontade de ver a cor da sangue que há dentro. Pois se for vermelho como o meu somos os dois passivos de dor. De sangrar.
Pego o coração dela em minhas mãos. Sua pele é macia. Sinto seu cheiro forte entrando pelas minhas narinas. Sendo tragado. Sinto seu cheiro impregnando em mim. Sou seu território. Eu e minha sala. Já começou. Não há mais volta. Encaixo ele na boca escancarada e começo a morder lentamente. Esperando sentir o romper da pele e o sangue jorrando. Decidido a ir até o fim.
A porta da sala se abre.

Ela voltou...