domingo, 3 de fevereiro de 2013

Família Madureira

O calibre 38 está sobre a mesa do café da manhã. Uma modesta mesa de café com três copos de plástico, dois pratos esfarelados e um revolver. Metal frio sobre a madeira lascada. E em volta três machos. Um velho, um dessarmado e um bebê. Seu bebê. Seu tio. E seu revolver.
O relógio na parede não acusa nem sete horas da manhã. A calmaria na rua acusa que não é dia de estar acordado sete horas da manhã. Em pleno domingo.
E os domingos de manhã nesta casa costumam ser bem mais mortos que este. Chico sempre acorda primeiro chamando a todos com um choro progressivo, que entra no sonho como despertador. A mãe o pega no colo e senta no sofá para amamentar. O restante toma café quem quiser.
- Você ouviu alguma palavra do que eu disse?
O tio procurou o olhar do perdido.
- Apenas tire essa coisa de cima da mesa. - ele responde.
- Se eu não percebo Deus sabe o que poderia ter acontecido!
- Tá descarregada.
- E que diabos você tem uma pistola descarregada em casa?
Ele mesmo tira aquela coisa de cima da mesa e a esconde pela cintura.
- Eu não sabia o que fazer com ela... Não consegui jogar fora.
- E se a polícia entra aqui você acha que vai te facilitar ter uma arma descarregada?
- Nenhuma polícia vai entrar aqui. Para de falar merda.
- Tem tanta certeza assim?
O tio levanta deixando o achocolatado pela metade.
- Trate de carregar essa porcaria.

Dez minutos depois Chico já está brincando com algo mais apropriado como um chocalho. A mãe numa viajem de trabalho. Tio Marco com ressaca e apenas duas horas de sono. "Chico acorda todo mundo cedo" tinham lhe avisado. Se não com o choro, por pouco, a bala. Acordou o tio ainda no sofá com os estalos da arma descarregada. Só Deus sabe o que poderia ter acontecido.
- Só Deus sabe!
O tio não se aguenta e grita do quarto.
- Tá se protegendo de que com uma arma descarregada?!
Deixou Chico brincando na sala, acelerou até o quarto e fechou a porta ao passar.
Sua preocupado, se aproxima e fala baixo.
- Tem alguém no porão!
- Como assim tem alguém no porão?!
Faz sinal para baixar o volume.
- Ontem a noite alguém tentou invadir a casa com essa pistola. Acertei ele com uma panela e tranquei ele lá.
- No porão?!
- Ele não vai achar nada, fica calmo.
O tio está calmo.
- E quem é esse filho da puta?
- Eu não sei.
- Você não foi ver até agora quem foi?
- Fiquei vigiando a porta a madrugada inteira.
- Não faz a mínima ideia de quem é?
- Não!
Chico bate forte com o chocalho contra o chão.
- Coloque de volta as balas então, vamos precisar.
Bate três vezes.
- Ela já estava assim.
- Ele entrou aqui com uma arma descarregada?... Certeza que não é um amigo seu?
Chico quebra o chocalho e abre o choro dos desamparados.
- Deixa que eu vou.
O tio se levantou da cama.
- Enquanto isso trate de carregar essa porcaria.

Puxa o tapete um pouco mais para a esquerda pra tapar o riscado que ficou na madeira. Arrasta uma cômoda até a porta do porão. Joga fora todas as bolinhas de plástico do chocalho. Encosta a orelha para escutar alguma coisa lá em baixo. Prende Chico no berço. E o 38 de volta a mesa da cozinha.
- Onde eu vou conseguir munição pra isso?
- Sei lá, mas isso precisa ser feito.
- Isso?
- Olha o cara pode ser só a merda de um ladrãozinho. Mas eu não vou querer descer lá e descobrir com uma arma descarregada.
- Isso aqui não é as merdas que você assisti na tv. Onde você acha que eu vou achar bala num domingo de manhã? Na lojinha do posto ipiranga?
O tio termina seu copo de achocolatado.
- Quer tentar na coronhada então?
- Coronhada?!
- Pode alegar que é legitima defesa.
- Alegar o que? Tá maluco? Não vai haver coronhada, não vai haver crime.
- E se for mesmo um policial?
- E se for?
- Ai você já fez o ótimo favor de trancar ele junto com toda a mercadoria.
- Já falei que ele não vai encontrar. Fica calmo.
- Eu to calmo, o Chico tá calmo. Até ele está calmo. Você é o único que tá pingando de nervoso aqui.
O desesperado se levanta nervoso e coloca novamente o ouvido na porta.
Nada.
- Será que matei ele?
- Panela com certeza é legítima defesa. Uma dona de casa pode se defender com uma panela, não pode?
- Você desce lá pra conferir?
- Você me empresta sua arma carregada?
Os dois se encararam.
- É melhor ligar pro Dani.
- É melhor ligar pro Dani.

O celular do Daniel só dá fora de área. Tenta pela quinta vez e nada.
O desesperançoso dá as costas ao problema e senta na cômoda. O tio o deixa por um instante e volta com dois copos e meia garrafa de wisk. Serve os dois sem perguntar. Vira um deles e se serve novamente.
- Liga mais uma vez.
- Eu já liguei.
- Liga mais uma vez!
Crava o segundo copo na mão do sobrinho.
- Tenta na casa da Gabriela.
- ?
- Tenta.
Ele vira o seu copo e disca.
- Caixa postal...
- Deixa cair...
O bip toca.
- Alô? Alô, Gabi? Sou eu... Eu to procurando o Dani. Desculpa ligar cedo assim, mas to precisando falar com ele, se souber me retorna urgente, ok?...
O tio faz sinal pra não desligar.
- E....
Espera mais.
Mais um vez.
Toma o telefone pra si.
- Atende essa merda seu vagabundo. Eu sei que você tá ai! Respeita seu tio e vem cumprir com o seu dever aqui...
O bip final toca. O tio se cala e devolve o celular.
- Ele não vai vir.
- Que história é essa da Gabriela?
- Ele não vai vir, não adianta, teremos que pensar em outro jeito.
- Outro jeito de quê?
Algo cai dentro do porão fazendo um estouro mais alto que o chocalho do Chico, que pra competir abre o berro.
- Ele tá acordando!
- É a hora, desce que eu te faço cobertura.
- Me passa a panela! Você fica com as coronhadas!
- Vamos, vamos!
Sai cômoda. Abre porta. E se armam. Na troca de olhares quem desce primeiro é o perdedor. O tio vai logo atrás. Chico ainda berra. E o homem ainda rasteja pelo chão tentando se agarrar a alguma coisa. Veste uma calça jenas, blusa amerela e o casaco branco do Dani.
- Dani?
- Cacete, você matou seu irmão!
Correm ao resgate.
- Caralho Dani você tá bem?
Daniel não responde, mas está consciente. O pegam pelo ombro e o levam escada a cima. Até o sofá.
- Segura ele ai, vou pegar água.
- A cabeça dele parece tá inteira.
O tio apalpa a crânio do sobrinho.
- Aqui.
- Vai acalmar o Chico pelo amor de Deus.
Dani consegue beber. Chico vem carregado na colo até a sala e sorri assim que vê Dani. Estende os braços e se larga no sofá. Corre para montar no tio, que na primeira patada geme, tenta falar algo, mas sua língua não se move.
Alguém bate forte na porta.
Todos se calam.
Bate novamente.
- Tio! É a Gabriela! Tio! Abre essa porta.
- Tá aberta! - o tio grita.
- Tá aberta?
- Mas você pode ir atender se quiser.
Antes de se levantar Gabriela já está na sala. Ninguém se move até que houve o primeiro tiro. Um tiroteio de olhares. Para todos os lados. Vidros de porta retratos estilhaçam. Buracos novos nas paredes. Espuma exposta no sofá.
- Gabi?
- Tio?
- Marco!
- Gabi?
- Francisco.
- O que tá acontecendo?
- Gabriela?
- Dani?
- Dani?!
- Você tá bem cara?
- O que aconteceu aqui?!
- Fala comigo.
- Eu to um pouco chapado ainda.
- Não cara, você bateu a cabeça.
- Bati?! Onde?
- Numa panela... Eu bati com uma panela... Você entra aqui na escuro... Porra, com uma arma na mão!
Ele arranca o revolver ainda encaixado na mão do tio.
- Descarregada...
- Eu descarreguei. - confessa Dani. - Só tava querendo me livrar dela.
- E onde diabos você arrumou essa arma?
Daniel não atira, apenas mirra nos olhos de Gabriela ainda em pé.
- Essa arma é sua Gabriela?
- Tio, não é bem assim...
- É Marco! Para com essa mania de me chamar de tio.
Gabriela apenas treme. Não responde nervosa.
- Eu quero ela devolta.
- Você quer a pistola de volta?
- O Dani me esperou dormir pra fugir com ela. É minha. Eu quero ela de volta!
- Não.
Gabriela Toma o revolver das mãos do desamparado.
- É minha. eu faço o que quiser. Todo mundo nessa família faz o que quer. Ninguém pode abrir o bico pra falar de certo e errado.
- Você não faz mais parte dessa família.
- Que isso tio?
- Eu não sou seu tio!
- Dani?
Gabriela ainda espera alguma resposta, mas logo dá as costas e vai embora.
- Gabi?
Ela não para.




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