Uma chara

Dando uma última olhada no mundo antes de dormir tomo um susto com a janela abaixo escancarando. Abrindo-se na madrugada. No susto caiu a brasa e passou com a velocidade de um martelo na lua cortando ao meio sua vista. A vizinha meteu a cabeça pra fora e olhou para cima. Olhos claros, morena, sorriso de covinha.
- Nem convida.
E quem diria?
- Oi?
- Eu sinto o cheiro daqui.
- Olha... Seria um prazer sua companhia, mas essa é minha última ponta e pelo jeito ela acabou de morrer. Se jogou do quarto andar.
Ela riu.
- Então espero um convite na próxima.
- Claro! Mas o que te grito?
- Tenta Jéssica.
- Marco. Prazer.
- Então tá combinado.
- Combinado!... No meu ou no seu?
- No seu... se no dia estiver de camisa.
- Sem problemas. Mas só a camisa? Imagino que vai querer a parte de baixo também né?
- Você está pelado?!
- Ei! Ficar pelado no quarto é um direito de qualquer cidadão.
- É melhor com a parte de baixo sim.
- Entendi. É um encontro.
- Não. Não é um encontro!
- Não?
- Não.
- Então preciso que seja mais especifica. Tipo...É vestido, mas é pra vestir esporte fino ou pode calça rasgada?
- ...
- Só pra ter uma ideia mesmo. Se vale a pena a tentativa de estar bem vestido.
- É difícil imaginar a definição de bem vestido para alguém nu.
- É bastante roupa.
- Ok.
- Combinado.
- Combinado.
- E posso te pedir pra vir com sua lingerie mais sexy?
- O que?!
- Eu nem preciso ver, só me dá essa importância vai. Como se fosse se arrumar para um encontro de verdade.
- Não é...
- ... um encontro. Eu sei.
Ela pensou um pouco sem desentortar o pescoço.
- Qual cor?
- Estica o braço pra fora.
Ela exibiu a pele dourada de Itacoatiara.
- Branca.

Usei pitera, smoking preta, picotei uma grama de haxa e misturei numa chara. Pra derrubar qualquer argumento. Ela teria que mostrar talento para se manter no salto alto. Coloquei uma musica e ela logo ficou de pé descalço.
- Uma peça a menos.
- Oi?
- Eu já tô de boa. Quer mais?
- Não, brigada.
- Coloca no cinzeiro pra mim?
- Onde ele está?
- Ali.
Me estiquei para pegar e ela me mordeu forte no braço.
- Tá loca?
- O quê?
- Você me mordeu?
- Não pode morder?
- Como é que você me diz que isso não é um encontro e me morde?
- Só pode morder em um encontro?
- É o que me sempre me pareceu.
- Isso não é um encontro Marco.
- Isso tá assim de ser um encontro.
E mostrei os dedos bem juntos pra ela.
- Se você me morder novamente eu vou te dar um cheiro no cangote.
- Que dá cheiro no cangote o que?
- Sério mesmo? Vai ser assim? E que nome você dá pra isso? Cordialidade entre vizinhos?
- Só me deu vontade e eu fiz. Chapada do jeito que você me deixou.
- Não era essa a única razão para você estar aqui?
Ela me olhou fundo nos olhos. Séria. Com uma cara assustadora de esposa zangada.
- Para isso ser um encontro deveria haver um jantar, um vinho e uma massagem antes de qualquer coisa.
Foi quando mesmo surpreso pela resposta ainda lhe lancei meu olhar de dono da razão.
- Gosta de habbibs?

Cheguei tarde do bar. Meu estômago ainda fermentava a cerveja. E tão logo que bato a porta arrependido por ter partido ela espanca do outro lado.
- Marco?
Geralmente tocam a campainha.
- Oi?
Voltei para abrir. mas ela nem esperou a volta completa da chave para entrar.
- Onde você estava?
- No trabalho.
Só me olhou.
- Por que?
- Te esperei a noite.
- Para que?
- E a essa altura da madrugada importa?
- Você podia ter me ligado.
- Te ligar? Eu tinha certeza que você tava enchendo a cara.
- E?
- E nem pra me avisar?
- Avisar que eu tava bebendo?
- Avisar que ia demorar pra voltar pra casa. Comprei a merda de um vinho rose e fiz a porcaria de um macarrão com almôndegas pra te agradar com a porra de um encontro de verdade.
- Eu achava que ligar para dar satisfação era muito compromisso pra você.
- Para de distorcer as coisas.
- Isso é coisa de compromisso sério sim.
- Isto não é um compromisso sério!
- Isto está assim de ser um compromisso sério!
Mostrei os dedos colados um no outro pra ela.
- E pra evitar isso sugiro que você vá pegar esse vinho enquanto tomo uma ducha rápida, que depois a gente janta e vai dormir sossegado... Sem discutir.
- Não prefere deixar o macarrão pra café da manhã e tomar essa ducha comigo?
- Definitivamente.